segunda-feira, 11 de julho de 2011

Naquele dia, a Literatura pegou ela de surpresa. Não teve jeito. Tentou coca, chocolate, dois filmes. Nada lavava a coceira pra longe da ponta dos seus dedos.

Tentou dirigir por meia hora, para o segundo mercado vinte-e-quatro-horas mais próximo da sua casa, e comprar xampu e detergente, que já estava quase acabando. Não deu certo:

No mercado, se viu no espelho, com aquele casaco escuro. Estava bonita, droga. Maldita madrugada, em que até ela, até ela, se achava bonita com um carrinho de supermercado e uma blusa velha. Porcaria de blusa velha e lírica.

Achava muito desconfortáveis essas noites em que a Literatura vinha e lhe atacava de surpresa. Tinha uma reunião amanhã cedo. Tinha que encher o pneu do carro. Tinha que lavar a louça. Meu Deus!, aquela louça ia ganhar vida e começar a se cuidar sozinha, se ela não fizesse nada a respeito!

Chegou em casa e não guardou nem xampu nem detergente, nem o monte de biscoitos que tinha comprado de autopresente não sabia por quê. Deixou as sacolas em cima da mesa da sala. Também não lavou a louça. E não dormiu.

Sentou na cama e pegou o bloquinho de papel que sempre deixava ao lado. Desencavou uma caneta de baixo do colchão – as canetas estavam na casa inteira, menos no porta canetas! Por que!? – Escreveu de um fôlego, como não costumava fazer.

Era uma estória sobre Dragões, Princesas e um violão mágico. Não tinha nada a ver com as ideias que vinha juntando por dias. Não era profundo. Não era calculada. Não era o que ela queria estar escrevendo. Não servia nem de exercício.

A Literatura é uma filha da puta, ela pensou. Mas Rocinante, o Cavalo Falante, respondeu-lhe, de dentro das folhas, que ela que era uma mal-agradecida. Ora, Rociocinava, tem letras onde antes era branco, tem ideias onde tinha nada, não é profundo, mas é bonito, e, principalmente, agora tem eu! Quer pedacinho mais bem escrito de Cavalo Falante?

Mas ela já estava dormindo desde a parte das ideias onde não tinha nada. Não deu nem tempo de fazer a revisão.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Pessoas e o tempo.

Se não tiver lido os textos que antecedem esse, primeiro leia isso e então esse aqui. Os próximos não vão ter imagens tão melosas, prometo.
***
Quando os dois acordaram estava nevando.
Nunca nevava. Ela adorava a neve, e isso só fez com que a sensação de estranheza aumentasse ainda mais. Quando eles se conheceram estava nevando, mas aquilo fora muito, muito longe de onde eles estavam hoje, outro mundo, outra vida. Ultimamente, sempre que entrava naquela casa as coisas pareciam estar certas, e isso a deixava com medo. Tudo estava certo, mas estava menos humano. Ele parecia distante. Nem conseguia ter certeza do que achou de ir para a cama com ele naquela manhã, exceto que pareceu certo, pareceu perfeito.
Três anos antes, quando se conheceram, numa exposição, por intermédio de amigos em comum, nunca imaginaram que fossem estar compartilhando a mesma cama tanto tempo depois. Eles sabiam que iam compartilhar naquela noite, mas pouco mais do que isso.
Não era uma exposição dela, ficaram em um dos cantos conversando e fazendo piadas sarcásticas das tais obras de arte. Ela estava fazendo uma grande viagem, uma forma de buscar inspiração em vários lugares do mundo. Ele era daquele pedaço de lugar nenhum. Se deram bem, afinal é isso que importa. Dois dias depois ela continuou na viagem, ele ficou.
Só foram se ver novamente alguns meses depois. Ela tinha parado de viajar e ele foi atrás da única editora que demonstrou algum interesse no que escrevia. Ela ofereceu uma cama para ficar, a cama dela, contanto que não por muito tempo; ele logo achou um lugar para ficar, nada comparado com a casa que morava hoje, mas nem por isso ruim. Só quando seus livros pareceram interessar um grupo de pessoas esquisitas é que conseguiu uma casa melhor, e deixou de lado as preocupações em correr atrás de editoras, agora tinha que correr atrás dos prazos. Nunca ficou grande o suficiente pra precisar de assistentes, nem teve crises criativas que ela não o ajudasse a ultrapassar.
Quando finalmente conseguiu essa casa eles já tinham plena consciência que estavam em um tipo de relacionamento, mas até hoje não sabem exatamente que tipo é esse. Se veem quase todos os dias, exceto quando ela tem que viajar, ele raramente faz tours. Mas o tempo que passam separados nunca foi um problema, pelo contrário, sempre lidaram bem com isso, como sempre lidaram bem um com o outro.
A impressão que ela teve naquele momento foi exatamente que precisava de algum tempo longe dele.
Ele tinha acordado antes dela, mas ainda estava ali na cama, com cara de sono e olhando para a neve. Ele gostava da neve, e ela não sabia se era porque aquilo o lembrava de casa ou simplesmente porque era neve. Ele não gostava do lugar onde tinha nascido, pelo menos não gostava mais do que de onde morava agora, mas ela sabia que as pessoas podem ser bem irracionais sobre essas coisas.
“Bom dia” Ele falou sorrindo quando finalmente tirou os olhos da janela e percebeu que ela tinha acordado.
“Bom dia” Ela respondeu se sentando na cama. “Não nevava a muito tempo.”
Ela percebeu o quanto ele se distraía com aquilo pela forma que ele respondeu, muito mais desligado do que de costume. “É verdade, nem me lembro de quando foi a última vez que vi neve”.
“Eu nunca tinha visto até o dia que nos conhecemos”. Aquilo chamou a atenção dele, quase como se ele tivesse esquecido daquilo, quase como se ele não fosse o mais sentimental dos dois.
Depois de uma pausa ele disse, se levantando da cama: “Tenho que escrever”.
“Mas já? Você acabou a pouco tempo, já mandou para a editora? Ou vai revisar?”
“Você sabe que eu nunca reviso, mas a neve me inspira, você podia vir comigo”. Ele respondeu sorrindo.
Ele colocou música para tocar e ela se deitou no colchão enquanto ele se sentou frente à mesa e começou a datilografar.
“Você teve alguma ideia nova?” Apesar de não dar para ver a neve daquela janela, estava frio, ela se enrolou com centenas de cobertores e não esperou que ele respondesse, mas aparentemente ele estava mais conversador do que de costume.
“Não exatamente. Mas lembra quando você me falou que as minhas estórias estavam começando a parecer com a nossa vida? Não gosto disso, quero mudar, quero provar, para mim mesmo, que minha criatividade não se limita às coisas que eu conheço”.
“Entendo, para mim é muito diferente, eu simplesmente expresso o que sinto, você além de fazer isso tem que encaixar uma história”.
“Não sei se é tão diferente assim, a história geralmente vem das próprias emoções que tento expressar. O problema é que, por mais que seja infinita a quantidade de estórias para cada coisa que se quer expressar, não gosto da ideia de estar sempre escrevendo sobre as mesmas coisas”.
Ela sabia daquilo, era provavelmente a coisa na qual mais se assemelhavam, nenhum dos dois gostava de ficar preso para sempre às mesmas sensações. Aquilo a fez pensar em como as coisas entre eles estavam durando muito, ela nunca esperou que fossem demorar tanto. Ele, agora, dizia que sempre imaginou que o que havia entre os dois era algo muito grande. Ela não achava que ele realmente acreditasse nisso, mas quando ele dizia esse tipo de coisa não conseguia conter um sorriso.
Agora ele já havia cansado de como esse tipo de coisa se refletia na arte dele. E ela tinha medo que isso quisesse dizer que ele estava se cansando dela. Na realidade ela nunca pensou que ele pudesse se cansar antes dela. A música havia acabado e ela dormiu com o som dos tipos no papel, dormiu pedindo para que quando acordasse não estivesse mais apaixonada.

sábado, 2 de julho de 2011

Pessoas e coisas.

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Para entender melhor esse texto antes leia isso.
***
No outro dia ela voltou bem cedo. Tentou encontrar algum restaurante japonês aberto no caminho mas não encontrou. Ele teria que se contentar com Yakissoba. Ia ficar feliz de usar os hashis.
Ela sabia o que ia encontrar quando abriu a porta da casa. Ele nunca lhe dera a chave de verdade, mas algum tempo atrás ela tinha pegado uma cópia emprestada e nunca surgiram motivos para devolver. Ainda não tinha amanhecido de verdade, mas quando ela entrou no lugar e encontrou todas as luzes apagadas soube que ele não saíra do quarto onde escrevia desde que escurecera.
Pelas frestas da porta viu que a luz do quarto estava acesa. Abriu a porta sem bater. Era provavelmente o quarto menos mobiliado da casa. Um colchão no chão. Uma estante de livros, uma mesa pequena e uma cadeira. A janela pequena  estava tão hermeticamente fechada pelas persianas que não deixava perceber que estava amanhecendo. Sobre a mesa uma máquina de escrever, papel, caneta, corretivo e um caderno de anotações. Ele estava deitado lendo alguma coisa.
"Já? Mas que horas são?"
"Está amanhecendo, seu idiota. Eu te trouxe comida."
Ele se sentou e começou a comer imediatamente. Dava para ver que estava com fome. É bem provável que as coisas que ele tinha deixado separadas para comer nunca tenham sido tocadas. Ela deitou no colchão, se aninhando no lugar onde ele estava antes. Era pequeno, mas ela ainda sentiu ele se deitando ao lado dela antes de adormecer completamente.
Quando ela acordou ele não estava mais lá. Abriu as persianas. Se ele tinha saído do quarto é porque tinha terminado o texto, e não ia voltar a entrar ali para escrever naquele dia. Prendeu os cabelos com os hashis que ele não tinha chegado a usar e foi ler as páginas que ele tinha escrito. Não foram muitas, não era muito prolífico, mas ela também não era com nada que fazia. Já tinha feito algumas exposições, mas nunca produzira rápido. Dirigira dois filmes, um independente que no qual não tivera problemas por conta do atraso e outro no qual tivera muitos problemas com datas, desde então tinha decidido dar um tempo com o cinema. Pensava em gravar um disco em alguns anos, mas por enquanto isso era só uma vontade. Sabia que ele também queria fazer isso, talvez fizessem juntos, ele poderia escrever coisas para ela.
Terminou de ler e saiu do quarto. Encontrou com ele mexendo nos vinis.
"Suas estórias estão cada vez mais parecidas com a nossa vida ou é o contrário?"
"Você sabe que para mim a vida só existe para servir de fundamento para a arte, eu já te disse isso, não?"
"Não, mas você escreveu em algum lugar."
"Como foi na galeria?"
"Como sempre é, cansativo, essa não é a parte que eu gosto."
"Desculpe por não ter estado lá."
"Não se preocupe, você já viu tudo que estava lá mesmo."
Ele colocou um dos discos para tocar e foram para a varanda. As vezes as pessoas podem pensar que varandas em casas de cidade não são tão aconchegantes quanto a de outros lugares, mas na verdade o que acontece é que as pessoas da cidade normalmente não se dão a chance de aproveitar a varanda que têm, quando têm.
Era para lá que iam quando ela queria pintar. Ficavam ouvindo a música vindo de dentro de casa e o barulho vindo de fora. Ele simplesmente ficava lá, sem fazer nada, talvez pensando, talvez não. No começo ela não gostava de pintar ali, não se sentia em casa, e achava estranha a atitude dele, mas com o tempo deixou isso de lado. As vezes achava que gostava mais daquela casa do que da sua própria.
"Você não tem a impressão de que isso tudo é muito perfeito? Muito vazio?" Ela perguntou. "Algumas vezes não consigo entender o que é isso que nós fazemos."
"Tudo é perfeito, dependendo de como você olha. O que nós fazemos é o que somos de verdade. Não teríamos nos conhecido se não fosse por isso."
"Mas não nos conhecemos, tudo que eu sei sobre você é que não gosta de dar nomes aos seus personagens."
"Isso não é verdade, você sebe muito mais sobre mim do que isso. Mas a verdade é que essa é a única coisa importante para se saber sobre mim."
Ela deixou a pintura secando, infinitas espirais em tons de vermelho e laranja, quase amarelo em algumas vezes, e os detalhes pretos em forma de V, talvez pássaros. Entrou na casa, só precisava de um copo de água. A música ainda tocava. Não a mesma, mas já não lembrava mais o que estava tocando no começo. Ela ouviu ele se aproximar, mas não se moveu. Ele soltou os cabelos dela e beijou-a no pescoço. Ele queria ir para a cama com ela. E, naquele momento, aquilo era tudo que ela precisava saber sobre ele.