sábado, 27 de abril de 2013

"...Classic, with a hint of neurosis."

K, ainda muito jovem, se viu preso numa rotina. Todas as coisas, todos os fatores, se resumiam a números postos ao lado de atribuições. E era horrível que tal coisa acontecesse com alguém ainda tão jovem. Ainda estava na faculdade, mas seus números eram seguramente desimpressionantes: Num dia escovava os dentes duas vezes, se alimentava também duas, bebia cerca de cinco copos d’água, tomava banho uma vez no inverno e duas no verão;  dormia seis vezes por semana, ia para a faculdade três, encontrava com amigos duas; lia três livros por mês, via cinco filmes, saia à noite duas vezes, e, se tivesse sorte, fazia sexo numa dessas. Voltava para sua cidade natal a cada um ano e meio. Sua vida acadêmica era marcada em períodos de seis meses, a sua vida amorosa, antes dos vinte anos, era marcada por paixões que duravam um ano. Até que percebeu que o último percurso que deveria ter levado um ano já tinha passado dos três. Nada mais na sua rotina tinha mudado, apesar disso. Lembrava de uma música que dizia “you never get wiser, you only get older”.  Não se sentia mais sábio, só se sentia mais velho, e mais escravo de suas necessidades, mais incapacitado de satisfazer suas vontades. Era como uma carapaça que tinha crescido ao seu redor, uma forma de se adaptar à realidade, não de se por em bons termos com ela, é verdade, mas uma forma de não se machucar quando as coisas dessem errado. É uma das formas-padrão de lidar com esse tipo de coisa, junto do desenvolvimento de tendências cínicas e e pessimistas. Essas duas já acompanhavam K desde que conseguia se lembrar de si mesmo como algo além de um rascunho de ser humano, desde que deixara de ser uma tartaruga no aquário de uma pet shop para se tornar um adulto.
Exceto que a rotina não lhe trazia nenhuma das vantagens que deveria. Ele não se sentia confortável, não se sentia seguro, não se sentia bem; muito pelo contrário, só sentia um enorme peso nas costas. Sentia a necessidade de mudar, a vontade de fazer algo novo. Não só mudar o número que precedia alguma das atribuições, mudar o quadro como um todo. E não sabia o que o prendia. Não era simples preguiça. Não PODIA ser. “Ninguém é assim tão preguiço”, pensava. E, de fato, era um escravo da preguiça, mas conseguia convencê-la a alforriá-lo temporariamente sempre que precisava; sempre que estava muito carente, sempre que achava que agir ia ser de alguma forma útil, para uma causa ou para alguém de quem gostasse. Surpreendentemente, nunca para si mesmo, era egocêntrico, mas simplesmente não se importava. Foi só quando resolveu que realmente deveria mudar que percebeu, cabalmente, que não se tratava de uma questão de preguiça. A vontade de mover a bunda gorda estava lá, mas era só isso que estava. A carapaça, tal qual a de Gregor Samsa, o prendia, o sufocava. Queria mudar mas não sabia como, talvez sequer houvesse como. Queria mudar para mais, sendo que vivera por anos na disciplina do menos, queria andar com a cabeça erguida depois de ter se acostumado a tomar cuidado para não pisar em merda de cachorro. Não queria ser uma pessoa diferente, estava muito satisfeito com a pessoa que era, mas para mudar o resto, mudar a rotina, como fugir da mudança que deve se dar em nós mesmos? Queria, como uma cobra, se livrar da pele antiga, mas continuar o mesmo animal. Definitivamente era isso que queria, a outra opção seria uma fênix, que morre para dar vida a filhotes, a criaturas novas. Era poético demais, mesmo para K, era muito infantil e ingênuo; ou melhor, simplesmente não tinha a arrogância suficiente para atraí-lo. Lembrava de ter ouvido uma outra música que dizia algo mais ou menos assim: “I can’t save you, there’s no violence in your heart.” O coração de K estava cheio de violência, mesmo que grande parte dela não passasse de faz-de-conta.
Precisava de uma fórmula mágica, mas não era assim tão fácil, não é mesmo? Se o fosse todas as pessoas conseguiriam fazer o mesmo, se fosse tão fácil os problemas da humanidade – ao menos os emocionais e espirituais – praticamente não existiriam. Não, existiam as dificuldades materiais, existia o fato de que mudar a vida significava desistir de muitas coisas, algumas ruins mas outras boas, e desistir significava se sentir fraco, significava que se sentiria menor do que seu medo. Não em todas as coisas, não, se livrar da maioria das correntes que o amarravam seria ótimo, mas algumas não, e essas machucariam. Sempre poderia esquecer, é verdade, mas K nunca fora muito bom nessa brincadeira de esquecer. Talvez essa fosse uma das coisas que devesse mudar em si mesmo. Mas como se faz uma coisa dessas? Algumas mudanças são relativamente fáceis: mudar os ambientes que frequentava, mudar as pessoas com quem convivia. Mas não queria simplesmente sumir da vida de seus amigos, assim como não estava exatamente certo se deveria sair da faculdade, talvez tentar outro curso, talvez tentar algo complemente diferente. Não mudar essas duas coisas já eram permanências fortes demais para serem desconsideradas. Mudar as pequenas coisas (se tornar mais otimista, se tornar mais humilde, menos preguiçoso, mais alegre) eram as coisas importantes, ao menos é o que diziam a maioria das pessoas. E a maioria dos livros de auto-ajuda. Pensar nisso já fez com que K reconsiderasse a questão. E eram essas idiossincrasias que faziam dele quem era, não eram? Passara a vida toda tentando se convencer que sim, que aquela era a pessoa que era, e sem se importar muito com a questão disso ser socialmente fabricado ou espiritualmente inerente, não fazia diferença, o resultado era o mesmo. Mas e se não fosse? E se ele não fosse nada além da carapaça numa cor verde-amarronzada? Não conhecia muito de biologia, mas não podia deixar de imaginar se, algumas vezes, ao tentar mudar de pele, as cobras falhavam e se transformavam em amontoados de órgãos que deveriam ser internos esparramados pelo chão. Não conseguia deixar de imaginar: e se por baixo da carapaça do besouro não existisse nada? Talvez fosse esse medo, mais do que a preguiça, que o impedisse de mudar.
Ainda assim precisava tentar. Talvez desse errado, mas talvez desse certo. Apenas talvez. 

sexta-feira, 12 de abril de 2013

A Fome

A Fome é diferente em cada um de nós. Todos, no entanto, estão famintos por algo. A Fome não pode ser saciada, não pode ser apaziguada, não existe solução. A Fome é a força motriz, é o motivo e o objetivo de tudo que fazemos. Alguns conhecem muito bem sua Fome, outros apenas arriscam dizer o que seria ela. Outros, como eu, e, talvez, como você, ainda não descobriram. Ou não aceitaram.

K, no entanto, era um jovem que conhecia muito bem sua Fome. E conhecia muito bem o poder que o desejo exercia sobre ele. Hoje em dia, especialmente para alguém jovem, parece cada vez mais difícil saber o que se quer. K sabia. Mas isso não era exatamente um alivio. Muito pelo contrário, saber o que queria era exatamente um problema para o jovem. A necessidade de K não era exatamente física, não era exatamente sexo. Era uma coisa que não existia, não propriamente, não quando se tem vinte e poucos anos. A Fome de K também não era por afeto, não era amizade o que ele queria, não era amor ou companheirismo, não era alguém com quem pudesse conversar ou alguém que pudesse compreendê-lo. Não, a Fome estava no laço e, mais do que isso, na complexidade dele. Nada que pudesse definir seria remotamente útil.

Tente lembrar uma daquelas cenas dos filmes mais antigos que mostravam o Dr. Hannibal Lecter poeticamente apreciando uma refeição. A carga irônica que se revelava quando o garfo entrava em contato com a carne, sem que o expectador tivesse certeza de qual a origem daquele alimento, mas que pudesse muito bem intuí-la. A tensão da faca cortando todas as células devidamente preparadas e arranjadas num magnífico prato, numa obra de arte culinária. A Fome não pode ser comparada com uma alimentação normal, só pode ser metaforizada nesse caso exatamente pela carga paradoxal que se encontraria nesse exemplo. E é aí que está a genialidade dessa metáfora. Mas na vida real a Fome é diferente, no mundo real a Fome é bem menos glamorosa, ainda que seja tudo que pode se existir de mais refinado numa existência. A Fome é psicopática. Sim, é uma obsessão, é uma pequena refeição que pode ser apreciada em todos os seus aspectos e que só serve para aumentar ainda mais a necessidade. Ou melhor, o desejo.

Não é algo bonito de se falar. Na verdade, pode muito bem chegar a ser pura e simplesmente errado falar sobre a fome alheia. Nada revela tanto da alma de alguém. Não as estórias de amor que tentam transformar todas as nossas características em metáfora, não as estórias de fantasia que são, em si, grandes metáforas; e, definitivamente, não as longas dissertações filosóficas sobre a psique de um personagem sobre a sociedade que o moldou e faz dele quem ele é. Quem faz de nós o que somos é a Fome. E – novamente – não é bonito que eu esteja aqui falando sobre a Fome que fazia de K quem ele era. Principalmente por ser essa Fome algo que ele mesmo não consideraria nem sequer ligeiramente elogiável. Que dizer então de reconhecer que era essa característica específica a base fundadora de seu ser? Da forma que levava sua vida? Para a maioria dos homens admitir tal Fome provavelmente não seria nem um pouco embaraçoso, mas o era para K. Ele era um jovem sensível e, mais do que isso, que pensava criticamente. E o seu próprio ser era o alvo preferido de suas críticas. Saber qual era sua Fome só deixava K ainda mais decepcionado consigo mesmo, e ele já era auto-depreciativo o suficiente.  Ainda que, de uma forma muito leonina, para o mundo exterior tentasse passar uma impressão de alguém seguro, até mesmo cheio de si. Pensava se todas as pessoas arrogantes eram tão inseguras quanto ele, mas duvidava que a resposta fosse afirmativa.

A Fome de K era o tempo. Era a espera. Era a tensão da caça. Era a conquista; não a conquista física, mas a conquista moral, espiritual, era a conquista total e definitiva. A Fome de K eram as relações de poder, na cama, nas carícias, nos olhares. Era saber exatamente qual efeito causava sobre alguém, fosse tesão ou fosse puro ódio, era a capacidade de transformar uma em outra e então de voltar ao começo. Era um trabalho lento, era um trabalho digno de um psicopata: a escolha da vítima, a escolha dos métodos e do momento, o prazer da vontade, do clímax e, depois, de se fazer ser odiado. Podia ser interminável, como uma dança, como o movimento de um pêndulo. Podia também ser muito rápido, todo o processo poderia durar apenas uma noite, mas nesses casos K não poderia aproveitar todas as suaves alterações no sabor de seu banquete, poderiam durar semanas, meses, até mesmo alguns anos. Podia ser fácil ou podia ser doloroso, era como experimentar um prato salgado para, na próxima vez, provar um doce. Uma quente e outra frígida.