sexta-feira, 18 de abril de 2014

A segunda pessoa.

Os melhores sorrisos
São dados pela metade
E as maiores verdades
Taxadas de maldade.

***

Você acorda suando ao som do despertador. Era de se esperar, foi uma noite quente e você não tem ar-condicionado em casa. Talvez por culpa do calor você teve sonhos ruins, não exatamente pesadelos, mas o tipo de sonho que te deixa desconfortável e te acompanha por pelo menos algumas horas depois de despertar. Normalmente você teria acordado antes do despertador tocar e teria ficado na cama, já acordada mas ainda sem muita coragem para levantar, enrolando até não mais poder. O toque estridente costumava ser mais a voz da razão dizendo que era hora de deixar a preguiça para lá e começar o dia do que realmente algo que te impedia de dormir demais. Isso só fez com que a sensação de não ter dormido bem fosse ainda maior. Ainda assim, você se força a fazer aquilo que sempre faz: come alguma coisa que não é exatamente um café da manhã, se prepara para o dia que vai enfrentar, penteia os longos cabelos castanhos e ondulados para que não ficar parecendo com os restos mortais de quem você foi no dia anterior, checa se tem tudo que precisa na bolsa antes de sair de casa e tenta parece mais acordada do que morta-viva enquanto o faz.
O caminho para o trabalho é o mesmo já há tanto tempo que você já sublimou o quão desconfortável é. Felizmente não é tão cedo quanto poderia ser, as piores horas do transporte público já passaram, embora o seu trajeto esteja longe de ser agradável. Raramente conegue um lugar para sentar no ônibus, e hoje não foi exceção. Apesar de já não ser assim tão cedo, o dia ainda tem aquele aspecto cinzento das manhãs, mas você sempre achou que isso se devia mais ao seu estado de espírito do que à realidade, não é mesmo? Você quase cochila de pé, e a senhora não muito velha e apenas ligeiramente gorda que está sentada num dos assentos amarelos à sua frente sorri ao te ver pescar. Você não consegue distinguir, a essa hora, se era um sorriso de companheirismo ou zombaria, e você sorri de volta, preferindo acreditar no melhor das pessoas. Ela, no entanto, não se oferece a segurar a sua bolsa.
Eu não preciso descrever o seu trabalho, não é mesmo? Nem como você se sente sobre ele, ou como pensa sobre ser só um estágio e como podem ser as diferenças em lidar com um trabalho real quando acabar a faculdade. Se é que vai conseguir um trabalho de verdade depois disso. Você conhece muito bem as suas mágoas, e eu não estou aqui para revivê-las. Não vou falar da sua chefe, ou dos seus colegas de trabalho, essas pessoas não são importantes, não hoje, não nesse dia; você ainda está apenas meio acordada, e qualquer interação com essas pessoas é mais mecânica do que qualquer outra coisa. Em mais de um momento do seu dia você se surpreende não tendo certeza se você disse alguma coisa ou se apenas imaginou ter dito, ou de onde vieram as palavras que saíram da sua boca – pois seu cérebro sem dúvida não teve nada a ver com o parto delas – e sem ter certeza do que foi que alguém te disse, mas você faz o que é preciso e ninguém parece perceber qualquer diferença. Você chaga a se perguntar se essas pessoas ligam assim tão pouco para você, ou se você age assim normalmente, até perceber que você está até mesmo fazendo piadas e comentários sagazes, como você sempre faz, a única diferença é uma letargia que parece saída de algum filme da Sofia Coppola. Você não lembra de que algo assim já tenha acontecido antes. E no fim isso se revela como nem sendo algo assim tão ruim, o dia hoje foi cheio, como costuma ser vez ou outra, e isso te ajudou a não se cansar tanto. Talvez você só tenha se acostumado demais com tudo que faz diariamente. Apesar disso, agradece que hoje você não precisa ir para a faculdade e vai poder voltar para casa sem maiores consequências e quem sabe depois de uma noite de sono com a qual você já sonha, amanhã tudo tenha voltado ao normal.
Voltar para casa não é um processo muito diferente do de sair de lá. Por um momento você tem até mesmo a impressão de encontrar a mesma mulher que sorrira para – ou seria de – você pela manhã, mas não tem certeza, pode muito bem ser apenas um efeito da idade e tipo físico semelhante. Chegando em casa você se sente melhor. Tem até um ligeiro sentimento de que deveria arrumar o seu quarto, mas, olhando melhor, não está assim tão mal, pode deixar o pó se acumular por mais uns dias, até porque você tem coisas mais importantes para fazer. As provas vão começar em breve e você, obviamente, está com seus estudos atrasados. Ninguém diria que você é uma estudantes irresponsável, muito pelo contrário, a maioria dos seus colegas tende a elogiar – embora de forma não exatamente elogiosa – a sua capacidade de tirar notas boas; isso, você prefere ver dessa forma, é uma capacidade de tirar notas boas, é insegura demais para se rotular inteligente, e cobra muito de si mesma para dizer que as notas são fruto de um grande esforço. Pega um dos livros que tirou da biblioteca, deixa próximo um que é seu mesmo, para possíveis referências, comparações e lembranças e acha a folha de papel onde vinha fazendo anotações sobre a leitura. Se perde naquilo por algumas horas, e não é de todo diferente daquilo que aconteceu no trabalho, mas ao estudar esse distanciamento parece algo mais natural, de forma alguma problemático. Já estava tentando criar alguma desculpa para se afastar dos livros e procrastinar por algum tempo quando seu celular toca, ou melhor, vibra, ao receber uma mensagem.
É a sua amiga. Não preciso dizer qual delas, você sabe; aquela que sempre te convida para festas e para a qual você na maioria das vezes diz não, embora te machuque um pouco dizer não para ela, vocês tem se visto tão pouco nos últimos tempos, e você gosta tanto dela, e por isso vez ou outra acaba dizendo sim, só para ter uma chance de sair com ela. Nem sempre os resultados são bons, às vezes vocês mal conseguem falar, seja pela quantidade de álcool consumido ou pelo barulho que sempre existe em todos os lugares para onde ela te leva, outras vezes, no entanto é bom, por vocês conseguirem se reconectar, outras vezes, sem dúvida, é bom exatamente por causa do álcool e do barulho. Não estou dizendo que você não gosta de sair, você sabe disso, apenas que os lugares para onde essa sua amiga vai nem sempre são os que mais te agradam, e que nem sempre você está com vontade de sair, não é nada decepcionante ficar em casa numa noite de sábado vendo os seriados nos quais você está atrasada, mas periodicamente você também tem seus acessos e não quer passar uma noite de sexta em casa por nada nesse mundo, às vezes você sai durante todos os fins de semana por um mês ou mais, e nem mesmo o mal-estar inerente às segundas-feiras faz com isso tenha parecido uma má ideia, muito pelo contrário, isso costuma te divertir bastante. São raras as vezes que você sai durante a semana, no entanto, e começar a trabalhar só fez com que essas escapadas se tornassem ainda mais raras.
A mensagem que ela te manda te lembra que hoje é sexta, e que sair hoje não parece uma ideia assim tão ruim. E você responde que sim, sem o menor peso na consciência depois das horas que você passou estudando. É claro que depois, quando chegar o dia de  alguma prova para a qual você se sinta especialmente despreparada, a situação vai ser diferente e você vai praguejar contra as horas que devia ter passado estudando e não o fez, mas isso é uma inevitabilidade da vida, e essas inevitabilidades nós temos que aceitar e aproveitar conforme venham. Também não é como se você não se sentisse melhor ao reclamar, o que está aí para te provar que às vezes mesmo as coisas mais insignificantemente ruins podem ter um lado positivo.
Você se arruma para sair. Você se veste bem, todos dizem isso e eu concordo. Não sei, no entanto, se é uma coisa intrínseca ao seu bom gosto ou se reflete algum tipo de planejamento, de fabricação, esse é um dos segredos que você ainda me guarda, e que eu não me esforço em descobrir. Você diz que o jeito que você se veste é algo que simplesmente acontece, e eu não sei dizer se isso é modéstia ou verdade, e, no fim, não importa, o que importa é que o jeito que você se veste é completamente seu. E coisas superficiais como a forma de nos vestirmos acaba dizendo tanto sobre nós, não sei se te disse mas não julgar pelas aparências sempre me pareceu algo tão superficial, até mesmo uma falta de respeito, quanto de nossas histórias, de nossas personalidades, emerge em fenômeno? Quem foi mesmo que disse que nossa alma é, na realidade, o corpo? Aristóteles? Provavelmente. Mas isso são vãs digressões, voltemos a falar de você.
Você encontra com a sua amiga e vão juntas para o lugar da festa. É, surpreendentemente, algo muito mais tranquilo do que você esperava, e só depois de algum tempo você consegue perceber que é a comemoração de aniversário do cara com quem essa sua amiga tem saído já há algum tempo – você jurava que já tinham terminado, mas aparentemente não, ou talvez tenham voltado, quem sabe? – e que você já teve chance de ver em algumas situações. Você, no entanto, não lembra o nome dele. Você também não conhece a maioria das pessoas que estão ali, mas isso não te impede de se divertir, é claro. Além do mais, por mais que você possa não reconhecer, fazer amizades nunca foi uma dificuldade assim tão grande para você.

Me desculpe, eu disse que ia voltar a falar em você e assim tão logo volto a falar de mim. Esse é, afinal, o momento da história no qual eu entro. Você nunca tinha me visto antes. É aí que você me vê pela primeira vez. Eu me reservo ao direito de ficar calado e não te dizer se eu já tinha te observado antes, de longe ou de perto, tem algo de romântico em deixar essa dúvida, dizer que eu posso ter estado tão próximo de você antes e ter sido completamente ignorado. Mas não dessa vez. Você me vê através da sala, que não é muito grande, mas estamos longe o suficiente para que nossos olhares se cruzem apenas casualmente. Eu te conheço bem o suficiente para saber o que em mim te chamou a atenção, eu sei que mesmo do outro lado da sala você prestou atenção nos meus caninos pronunciados, que não raro chegaram perto de te machucar, no meu cabelo, pouco mais curto que o seu, e tão parecido com ele, também castanho e também ondulado, o meu estilo meio gótico, mas sem muitos exageros. Quando nossos olhares finalmente se fixaram um no outro, eu soube que você gostou dos meus olhos escuros tanto quanto eu gostei dos seus cor-de-mel. Eu sabia tanto quanto você que aqueles olhares estavam fadados a se atraírem, como se atraírem, o que eu não fazia ideia – e tenho certeza que você também não fazia – era que algum dia, nem tão distante assim, nós íamos nos conhecer a ponto de que eu fosse conseguir fazer uma descrição assim tão detalhada daquele seu dia, daquele momento em que nos encontramos. 

Tradução de música incompleta e Fragmento de auto-ajuda literária.

Ela deve estar em alguma sarjeta
Esperando a alvorada e os metrôs
Meio bêbada; tentando esquecer,
Não pensar que em algum lugar
Eu estou a esperar a morte,
Cuspindo saliva e sangue
No assoalho do banheiro,
Carcomido por inteiro,
Rogando a deus pra que ela venha,
Que me salve a vida e me foda,
Como só ela pode.

***


A função de quem escreve é a de dar sentido a algo que, por princípio, não tem sentido algum, a vida. Nada mais natural, portanto, que o começo das carreiras literárias – embora eu tenha algumas ressalvas a utilizar uma palavra tão não-literária quanto carreira numa situação como essa – seja uma tentativa de dar ordem à própria vida de quem escreve. Disso decorrem as centenas de primeiras obras que são ao menos em parte autobiográficas, e também o número ainda maior de estórias de amor. Talvez seja algo comum à categoria que acaba se dedicando à escrita, afinal, não raro é ouvir comentários que ressaltam a necessidade de uma sensibilidade desenvolvida, de capacidade de observação e de solidão. Não é difícil ver como essas características geram pessoas emocionalmente disfuncionais, e com grandes dificuldades de relacionamento, que precisam ser exorcizadas na escrita, que pode ser também uma forma de prática ou memória do fato real, pois as coisas parecem muito mais verdadeiras e passíveis de compreensão quando estão no papel. A vida real é algo muito mais complexo que a mais surrealista das novelas, ou mesmo do que o Finnegan’s Wake. Eu mesmo poderia dizer que, na minha experiência, tento fazer algo assim, poderia mentir que foi mesmo isso que me aproximou da literatura, mas isso seria só uma forma de tentar parecer especial, seja como indivíduo ou como classe. A busca por sentido não é especial a quem escreve, e quando procuramos o sentido da nossa, sejamos nós quem formos, o primeiro passo é olhar para quem está perto, para as pessoas com quem nos relacionamos. Eu acho uma forma de pobreza a literatura que foca no romantismo e esquece a amizade. Mas a relação amorosa sem dúvida é onde o sentido parece – e pode ser apenas uma aparência ou não – mais forte, mais claro. Talvez por isso seja tão valorizada. O amor é a busca do nosso sentido no outro. E quanto mais incerto parece o mundo, maior se faz a dependência. A diferença é que algumas pessoas o fazem na vida real, procuram um amor material, enquanto outros se dedicam outras coisas, procuram um amor metafísico, na literatura ou na religião ou na política ou no que for. E é tão mais fácil essa segunda opção, é tão mais difícil que alguma dessas coisas nos decepcione quando comparamos isso a algo tão carnal e falível quanto um ser humano, que também tem suas vontades e fraquezas e, principalmente, a sua própria busca de sentido. 

terça-feira, 15 de abril de 2014

Bons irmãos

Somos filhos do poder
Força e lei
Lei pela força
Força para lei
Somos bons irmãos
Respeito, cordiadilade
Somos super-heróis
Nós, e mais ninguém
Mais do que animais