sexta-feira, 27 de junho de 2014

Onde levou o bilhete

Eu não sei exatamente o que aconteceu naquela semana, antes e depois do incidente, estava preocupado demais com meu novo emprego e a mudança e tudo mais e os dias passavam muito depressa, além do calor que fazia. A memória que eu tenho foi daquele dia e parcialmente daquela noite. Dessa o que sei foi que com certeza desmaiei na cama, bêbado, lá pelas dez horas da noite, um horário mais cedo do que eu costumo dormir e que não pude escolher, as circunstâncias e o álcool acabaram me nocauteando. Pois bem, as circunstâncias foram duas: a primeira é a de que não havia dormido bem na noite anterior já que, além da ansiedade pela mudança de casa, a mudança de horário me roubou uma hora de sono de acordo com o horário de verão; já a segunda é a que compõe essa história e que relembrarei nessa página. Lembro de estar cozinhando o almoço, acho que era coisa rápida, algum macarrão, quando escutei uns gemidos. Primeiro achei que era o gato e olhei ao meu redor com ar de preocupado para checá-lo, mas ele não estava comigo. Pensei em procurá-lo mas parei por aí, não me preocupei mais, ao contrário, despreocupei-me ao perceber que estava sendo bobo, jamais me preocuparia  com o gato, e afinal e contas ele sempre fazia uns barulhos estranhos mesmo. Foi quando precisei ir ao banheiro, logo após da lembrança do gato, passando pelo corredor iluminado pela da grande janela ficava de frente com o muro que separava a casa com a casa do lado, que escutei novamente os gemidos, e dessa vez o som era mais alto. Passava pouco do meio-dia e o sol batia forte naquele muro conforme a luz refletia para dentro. O sol fez com que, além da curiosidade pelos gemidos, eu parasse ali durante alguns segundos afim de me observar o dia e espairecer. Mas sim, os gemidos vinham do vizinho. Não eram de sexo, nem de criança, nem de bicho. Eram gemidos de dor.
Concentrado naqueles sons que passavam por cima do muro, de repente pude escutar a voz da vizinha. Comecei imediatamente a especular. O marido era um cara tímido, mas das poucas vezes que nos falamos abertamente parecia muito simpático, e por esse motivo era meio estranho pensar que ele poderia tê-la agredido. A vizinha, no entanto, possuía certa agitação em primeira vista, mas o tempo a sublimava logo em alguma melancolia. Ela fazia lembrar uma dessas mulheres que sonham jovens e em segredo com algum tipo de futuro, mas que em algum momento acabou sendo intimada ou cobrada de um casamento, com seus pais dizendo que está na hora e que se não for agora não será nunca mais, que eles não podem mais sustentá-la e etc. Parecia ironicamente que o sonho perdido dessa mulher em particular era ser freira, levar a vida nu convento. Quando os via juntos, o marido e a esposa, ele sempre estava em primeiro plano alguns passos a frente, mas não por vontade dele, sempre a empurrava e a puxava junto, como se faltasse a ela algum bom senso de sinergia necessário para encarar junto dele as situações sociais. Além disso, e essa é uma característica importantíssima, ela era acolhedora demais, e não só com ele, mas também com os outros. Suas falas expressavam constantemente uma preocupação com o bem estar do marido e o conforto dos que estavam ao redor, e com clareza parecia viver sob esse propósito.
Escutei um grito, fraco, sofrido, destacava-se entre os gemidos. Com ele tive uma surpresa: os gemidos eram do marido, ele sofria. Eu tinha o número de telefone deles, poderia ligar e perguntar se precisavam de ajuda, cogitava, ou poderia chamar uma ambulância, a polícia, enfim, não sabia o que fazer. Não deveria ser nada, deveria despreocupar-me dos gemidos como fiz com os supostos gemidos do gato. Achava eu que vizinho devia ter se machucado ou coisa assim. O que veio a mente em seguida, porém, foi que sendo pouco tempo após o meio dia, a esposa teria acabado de chegar em casa do restaurante. Esqueci de mencionar que nessa época a esposa fazia meio período num restaurante ali perto. Parece que uma amiga era a dona e também uma ótima cozinheira, e por relatar que havia recebido reclamações do marido, insatisfeito com sua habilidade, ou falta de, na culinária, a esposa conseguira uma ajuda da amiga experiente com uma espécie de emprego construtivo, e ainda a deixava preparar um almoço no restaurante para levar ao marido como prova de seu esforço. Tendo acabado de chegar em casa então, será que ela havia encontrado o marido já em dor ou será que num ato súbito de realização da própria vida quis quitar as dívidas com seu futuro desperdiçado e na falta de resposta teria partido pra cima do homem com e o machucado? Até mesmo podia ser um caso amoroso, de ter encontrado o marido com outra e ter trocado em tal situação o juízo pela violência. Não soubera dizer naquele momento apesar de aproveitar o exercício.
No fim, acabei ligando. Fui até a sala em direção ao telefone e reparei que de lá também podia escutar os gemidos, agora ainda mais altos, numa questão de talvez uns três minutos. Ela atendeu o telefone:

_Alô?
_Dona Velma?
_Sim, quem é? - sua voz era meio tremida
_Seu vizinho, X., vocês estão precisando de ajuda?
_A-a-ajuda? Não, não precisa, já liguei, estão vindo!
_O que está acontecendo? Quem está indo? Não tenho como não ouvir daqui de casa...
_Desculpe, a ambulância, meu marido está com muita dor, não sabemos o que é!

Nesse momento houve o som da sirene da ambulância descendo a rua. Desligamos o telefone imediatamente sem nos despedir. Ela e eu, como se não tivéssemos mais o que falar nem explicações para dar ao desligar o telefone. Peguei meus documentos e meu celular e desci imediatamente para a rua. Lembro-me de vê-la na porta de sua casa, enquanto tiravam o marido de casa com uma maca. Não estava em prantos, mas tinha um choro contido, estava assustada. Observei a situação e fui até ela. O marido, continuamente em agonia, foi rapidamente posto em posição no carro e não consegui vê-lo com atenção. O homem da ambulância fez sinal que saía e perguntou se eu poderia fazer a gentileza de levar a senhorita ao hospital em minha própria condução. Perguntei então se ela queria carona para o hospital, ela disse muito obrigado e que queria sim. Fomos. A partir daí as coisas foram muito rápidas e loucas. Chegamos no hospital e a ambulância que entrara por um local especial já estava vazia, o pessoal já havia enfiado o marido pelos corredores e alguns enfermeiros levaram a mulher e nos separamos, acho eu que lhe perguntavam coisas de praxe enquanto entregavam papéis para preencher. Tudo isso foi com muita pressa sem que tivéssemos tempo de refletir no assunto, o que fez a situação parecer desesperadora, ou mais grave do que parecia desde que ouvi os gemidos na cozinha. Ela voltou, não disse uma palavra e sentou-se ao meu lado na sala de recepção. Disse a ela que esperaria, para ela se tranquilizar. Uma TV ligada para nos distrair não cumpria esse seu papel e eu pensava cada vez mais quanto tempo teria que ficar ali. Enquanto aguardávamos, ambos visivelmente cansados, vieram nos dizer que o haviam sedado por causa de seu estado inquieto e faziam exames. Ela fez como se fosse perguntar sobre a situação do marido mas o enfermeiro deu as costas e saiu em direção ao corredores antes que ela pudesse. Senti dó. Foi uma eternidade até que ela fosse chamada novamente, dessa vez pelo mesmo enfermeiro que tinha escapado aquela hora. Não foi levada a sala alguma, apenas a alguns metros a frente, no canto que se formava na sala antes da entrada para o corredor, e vi, lembro exatamente, como de repente a mulher quase caiu no chão dando um berro estranhíssimo, daqueles que agente não conhece até ouvir. O marido, segundo aquele infeliz e eleito enfermeiro, havia falecido. Não tenho a mínima ideia como é que fui parar em casa e que horas eram, mas lembro-me que durante esse tempo de choque e frenesi até o cheiro do meu próprio escapamento, ao estacionar o carro em casa, a mulher saiu e voltou várias vezes em minha presença. Numa dessas vezes fui chamado junto com ela para uma sala separada onde deram-na alguns calmantes, um copo d'água que ela não chegou a beber por inteiro e que provavelmente era o segundo ou terceiro que recebia, e uma imagem de raios-X do seu marido, mostrando um esbranquiçado anormal aonde era provavelmente seu estômago. Explicaram-nos que ele havia engolido um pedaço de papel ainda naquela manhã, e que devido a uma anomalia genética hereditária, uma forte rejeição à tintura no papel teria dado início a um processo em cadeia e não me lembro o nome disso e daquilo e que o acabara matando. Foi horrível. Mas o fato intrigante foi o de que ao retirarem o papel na autópsia, logo em seguida, puderam desdobrar um bilhete que dizia:
"Querida Velma, não suporto mais essa vida aqui e não suporto mais você, gostaria de ter aguentado um pouco mais e que as coisas não tivessem que acabar assim. Adeus."
Deixando em aberto várias questões. Teria ele se matado? Na minha opinião, não. Não é possível que ele soubesse sobre aquela história de doença genética e todo aquele papo de como engolir um papelzinho causaria sua própria morte, e ele nem tinha o jeito de bolar uma morte assim tão poética, até mesmo porque sofreu de dor por pelo menos durante uma hora antes de falecer. Mas então o que era aquele bilhete? Porque o tinha engulido? Além disso, tinha que tê-lo feito antes da mulher chegar em casa. A hipótese que formulei, mas que obviamente não posso comprovar e sobre a qual não tive a falta de escrúpulos para investigar mais na época com a vizinha, é que o marido, descontente com alguma coisa que acontecia em sua relação com aquela mulher, planejava ou se matar ou fugir dali, mas acabou se enganando com o horário e foi surpreendido pela mulher que chegava do serviço, logo quando posicionava seu bilhete de despedida, e para se livrar dele o engoliu, tendo como resultado a maldita rejeição e para fins práticos, a morte.