segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Um e outro alívios

Ela está esperando no ponto de ônibus, e está frio, mas não de um jeito pro qual ela estaria preparada, se já não morasse em São Paulo há algum tempo. Mas a coisa importante mesmo deste texto não é o fato de ela estar lá esperando, ou aquela sensação engraçada de expectativa que ela está sentindo, esse tipo de sensação que a gente sente quando está pra fazer alguma coisa pela primeira vez.
Não.
A coisa importante, pelo menos para mim, é que ela vai morrer. Não agora, não. Eu não acho que eu sei lidar com esse tipo de estória ainda. Nem daqui a poucos anos. Ela não tem nenhuma doença crônica misteriosa nem nada - além de um leve desconforto na gengiva quando ela usa pastas de dente que não sejam infantis. Ela vai morrer, provavelmente, só daqui a uns sessenta, setenta anos, bem depois de o texto já ter acabado. Talvez oitenta, se ela seguir até o fim da vida aquele programa maluco de dieta e exercício que a irmã dela inventou de elas fazerem, mas ela dificilmente vai ter paciência pra isso.
É importante que ela morra, e que eu esteja consciente disso, porque ela está consciente disso, o que é muito interessante. Eu gosto muito de escrever e ler sobre deuses e feiticeiros que vivem milênios e heróis e heroínas cujas canções os transportam para a eternidade, pode ter certeza. Mas ela não é uma dessas pessoas, e ela sabe disso, e isso provavelmente torna o sentimento do vento frio no pulso dela diferente, por mais que ela não se lembre disso em sessenta, setenta anos.
Caramba, eu nem sei o que vai pegar ela daqui a sessenta, setenta anos, mas pode ser que ela nem se lembre do que ela ia fazer hoje, com quem, e do porque isso era importante. Mas ela provavelmente vai se lembrar dessa sensação engraçada de expectativa que a gente sente quando vai fazer alguma coisa pela primeira vez. Não sei se ela ainda vai ter muitas coisas pra fazer pela primeira vez na vida daqui a sessenta, setenta anos, mas quem sabe? De qualquer forma, é uma sensação universal o suficiente pra ela se lembrar.
Pelo menos, é universal dentro do universo de nós dois, porque ela sente a sensação mais ou menos do jeito que eu sinto, então já é um universo maior do que a gente, certo? E talvez você também sinta, eu sei lá.
A coisa importante sobre ela ser só alguém que vai morrer daqui a pouco é que ela sente esse tipo de coisa que deuses e heroínas e feiticeiros provavelmente não sentem, e isso é muito interessante. Por exemplo, paulistana prevenida que é, o vento não a incomoda tanto pelo frio, mas porque está batendo no cabelo dela de um jeito que ela não gosta, porque isso vai deixá-lo embaraçado ou de alguma forma assimétrico, mas assimétrico do jeito errado.
Isso a incomoda por dois motivos:
Primeiro, isso a incomoda porque, por algum motivo, é importante que o cabelo dela esteja hoje, nessa ocasião em que ela vai fazer aquela coisa pela primeira vez, seja qual for, é importante que o cabelo dela esteja em ordem.
Segundo, isso a incomoda porque ela gosta de acreditar que não é uma dessas dondocas que ficam horas se arrumando na frente do espelho ou, ainda pior, em um salão de beleza, só pra fazer coisas, inclusive bem menos importantes que a coisa que ela vai fazer hoje.
Isso, por sua vez, a incomoda por dois motivos:
Primeiro, porque ela se lembra de que, por mais não dondoca que seja, e por mais que só gaste dinheiro com alguma coisa de maquiagem pra mãe dela e pro pessoal do trabalho não encherem o saco, e por mais que o penteado favorito dela seja prender tudo como der pra prender, ela até que sim, de vez em quando, quando passa um ônibus mais devagar, ou quando o metrô está parando, ou quando passa ao lado de um prédio espelhado, ela se dá uma olhada, confere se a postura está boa, elogia a disposição das cores da roupa que ela escolheu de manhã etc. Então ela tem que impedir a mente dela de discutir consigo mesma se isso é, de alguma forma, uma incoerência, o que é em si um saco - a mente dela é boa em contra-argumentar.
Segundo, porque ela acha que pensar nas dondocas como dondocas, além de ser terrivelmente século XX, pela terminologia, é uma coisa potencialmente muito machista. Eu não tenho certeza se ela pensa isso mais em termos de sororidade, ou de controle dos corpos, ou sei lá o que mais, porque ela provavelmente não lê os mesmos blogues que eu, e parece que curte muito a Judith Butler (de quem eu não li quase nada) e eu não tenho certeza como ela pensa sobre tudo o tempo todo, afinal.
Isso é também muito interessante e, eu acho, talvez um pouco assustador.

2 comentários:

Lucas Paolo disse...

No far-falhar dos cabelos... corre pela espinha um arrepio ao toque de afilada matéria morta. Na corrida maluca literária a lebre sempre ganha da tartaruga, menos no caso em que esta apanha o busão.

(P.S.: presunçoso o pré-texte-comentário do Blogger com este: "Prove que você não é um robô." - prove você mocinho!)

Carolina disse...

Yuri, esse texto foi muito bom! Sabe, poucas coisas na vida me fazem sentir tão viva quanto essa sensação de "fazer uma coisa pela primeira vez" da sua personagem. Gostei de ler! :]