quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Cidade Mágica

(para o Akira Yamasaki)

Se eu te dissesse que o trem pra São Miguel saiu voando e chegou antes do horário
E que o metrô da linha verde se pintou de cor de rosa no trocar do itinerário
Se eu te contasse que os faróis das avenidas se acenderam de azul a um só momento
E que em função da confusão os motoristas esqueceram os carros no engarrafamento

Era capaz d'ocê dizer que eu 'tô maluco ou qu'eu 'tô precisando ir no oculista
Porque pra ver tanta besteira concentrada tem que 'tar ruim da cuca ou ruim da vista, aiai...

Se eu te dissesse que o Pinheiros 'tava cum cheirinho fresco de roupa recém-lavada
E que o caminhão de lixo era muvido a algudão doce e não tinha cheiro de nada
E que maestros ocuparam praças, pontes, passarelas, cada canto e cavidade
E quando deram sete horas transformaram em melodia os ruídos da cidade

Era capaz d'ocê mandar eu usar o tal de cotonete e mais de uma vez por dia
E, se a limpeza não me desse resultado, pra eu já deixar marcado uma terapia, aiai...

Se eu te contasse que chuveu no Itaim, mas que foi chuva de bombom e borboleta,
E que o sol naquele dia era nascido de cesárea e concebido na proveta
E que o sorvete que eu tomava tava estranho porque a calda era roubada de um cometa

Era capaz d'ocê dizer que de falar tanta besteira eu só pioro a minha fama
Mas que apesar de eu ser um louco numa cidade maluca, a verdade é que você me ama, aiai...



domingo, 1 de novembro de 2015

O Espelho

Depois de horas de contemplação sem fim
conclui Narciso:
Deus inventou o espelho pensando em mim

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

o Elefante

tem um Elefante na palma da minha mão

não é uma metáfora, ou uma experiência artística, ou um jogo de palavras,
não
literalmente, na palma da minha mão, tem um Elefante.

ele é orgulhoso, e algo cheio de si, como acaba acontecendo com os elefantes que saem muito cedo de casa, e é por isso que tenho que tratá-lo de Elefante, não de elefante.
fora isso, não há qualquer motivo para as maiúsculas.

as maiúsculas, todos temos que concordar com isso uma hora ou outra, são desperdiçadas na maior parte do tempo;
(e a pontuação)
mas eu sou, talvez, uma pessoa bem menos revolucionária do que gostaria, pelo que a maioria das minhas frases acaba, intimidada pelo olhar duro das sábias da gramática, cheia de vírgulas e pontos e parênteses e letras maiúsculas;
mas estou hoje inspirada pelo Elefante, este sim um verdadeiro revolucionário, e transgrido. minhas frases começam sem maiúscula, e todo este parágrafo - estrofe? - que não passa de um grânde parêntese, está sem parênteses para marcá-lo.
o Elefante acredita, e eu concordo com ele, que grânde deveria ser acentuada, e tú.
tú acentuada é muito mais bonita.
grânde acentuada tem outra grandêsa.

tenho um Elefante gramático e revolucionário em minha mão, e uma selva por todo meu corpo.
nas pontas dos meus dedos, caçoando do Elefante por sua empáfia, tem cinco jabutis. nenhum deles sabe o que empáfia significa, mas adoram a palavra, e acreditam que descreve perfeitamente o Elefante (ou, como eles gostam de dizer, "O Elefante").

no meu joelho direito tem uma cobra coral, que se enrosca em dias de frio com tanta força que me dói às vezes. ela também se enrosca quando está com saudades do Elefante, porque sabe que eu levo minhas mãos ao joelho quando ele dói. ela é ligeiramente apaixonada pelo Elefante, um amor que ela disputa com o tigre que tem no joelho esquerdo; 
o tigre, porém, só sabe machucar com arranhões, que são muito menos eficazes do que enroscos. quando está com saudades de seu amado Elefante, o tigre cutuca meu joelho esquerdo com sua garra, até que ele fique pinicando e eu tenha que baixar minhas mãos para coçá-lo. ele nem sempre faz isso, porém, só quando está com muita saudade, porque os jabutis que tem nos meus dedos gostam de mordiscar suas orelhas e bagunçar seu pêlo, e o tigre que tem no meu joelho é todo muito vaidoso. é um paradoxo terrível, pensa o tigre, que ele só consiga encontrar o Elefante que tanto o apaixona apenas quando seus pêlos estão bagunçados e quando não consegue conversar direito, porque tem um jabuti em sua orelha.

sempre que isso acontece, o tigre tenta puxar um papo com a mariposa que tem em minha canela, sua grande confissora.


não consegui falar com meu amor hoje...

por quê?

eu tinha um jabuti na minha orelha...

isso é uma metáfora, ou uma experiência artística, ou um jogo de palavras?

não, literalmente, mordiscando minhas orelhas, tinha um jabuti.


a mariposa dá de asas, suspira, e se prepara para uma conversa que ela sabe que vai ser confusa.
  

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Oração das Almas

Pra dona Glaucia, que me ensinou a ter menos vergonha delas

As almas guardam um silêncio todo digno, todo específico, nos cemitérios.

Não é como seu silêncio no dia a dia, quando elas vão nos visitar em nossas casas e lá ficam, tímidas, observando o que fazemos discreta e educadamente, talvez para compensarem o fato de nos estarem bisbilhotando a vida. São poucas as pessoas que se sentem confortáveis quando há almas as observando cozinhar, lavar-se, varrer o chão, amar. Tememos, talvez, o peso do julgamento - o silêncio das almas que nos visitam, por educado que seja, carrega em si algo de julgamento, como quem diz "No meu tempo, fazíamos diferente" ou "No Reino de Deus, não precisamos desse tipo de coisa". 

Mas não é assim nos cemitérios. Nos cemitérios, elas se sentam sobre as lápides, e nos miram com os olhos desbotados dos anjos de pedra e das fotografias pregadas nos túmulos (não com os olhos de Nosso Senhor Jesus Cristo, porém, que nos cemitérios estão quase que sempre fechados). Elas se sentam em suas lápides, silenciosamente, e simplesmente indicam sua alegria pela nossa visita através das flores murchas e dos vasos quebrados, através dos gatos velhos e dos pássaros que voam entre as pedras.

Ou talvez eu esteja errado;

Talvez mesmo aí, em seu silêncio gentil e hospitaleiro, haja um quê de julgamento, como se nos dissessem, viu?, é fácil receber bem - sempre que visitamos, você insiste em prosseguir cozinhando, lavando-se, varrendo o chão, amando; quando basta que você se sente sobre sua lápide e demonstre sua alegria com nossa visita!
Talvez mesmo nos cemitérios, então, as almas nos julguem, de alguma forma. Mas não vou insistir nessa linha de raciocínio, ou meu texto pode ficar excessivamente metafísico.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Maçãs que comi

Ontem comi duas maçãs
seguidas
Quem é que faz isso?
Maçã se come por unidade
E eu?
comi o dobro!

domingo, 9 de agosto de 2015

Oração da Quaresma

Passar as mãos nos cabelos de D'us
Abraçar D'us
Fazer carinho no rosto de D'us
Elogiar Seu sorriso

Chamar D'us pra tomar uma cerveja
Tomar guaraná com D'us, que está guardando a quaresma

Tocar violão com D'us
Perceber que D'us, apesar da voz maravilhosa, volta e meia erra o tempo, principalmente quando tenta tocar samba.

Ficar amigo de D'us, mas muito camarada mesmo.
Querer bem a D'us, ser por ele querido

Saber da morte de D'us, sofrer com a morte de D'us,
Chorar, inconsolavelmente.
Ir ao enterro de D'us,
Chorar, inconsolavelmente.

Três dias depois, um bilhete:
"Já melhorei. Vamos tomar aquela cerveja?"

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Paraparábola

Conta-se que, após uma noite de tempestade, um velho sábio caminhava pela praia. Milhares de estrelas do mar estavam espalhadas sobre a areia, a vida se esvaindo conforme o sol subia.
Uma garotinha corria da praia para o mar, carregando as estrelas moribundas e atirando-as de volta à água. Sentindo que daí extrairia alguma sorte de sabedoria, o velho aproximou-se da menina e lhe perguntou:
- São centenas, milhares de estrelas morrendo nessa praia, e há milhões dessas estrelas no oceano. Não faz diferença alguma que você consiga resgatar algumas dúzias, então, por que você as está ajudando?
Ao que a garotinha, olhos cansados e cabelo coberto de suor e areia, respondeu:
- Eu perdi uma aposta.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Xangai

Sobe um vento mandarim
Rumo ao sol, sol de 上海

Não sou eu quem fica em mim,
Não sou quem de mim se vai

Mal sou sombra de nanquim,
Mal sou nuvem que esvai

Posso só ser eu, enfim
Ao seu lado, em 上海

domingo, 24 de maio de 2015

Hoje no metrô

Hoje algo um tanto diferente aconteceu. Encontrou Igor na estação Butantã, como quase toda sexta-feira depois do trabalho de ambos, só que dessa vez acompanhado da irmã. O Igor era um de seus melhores amigos: já se conheciam há alguns anos, já haviam conversado de tudo e já tinham passado por umas poucas e boas juntos, mas até hoje não tinha calhado de conhecer alguém da família dele. São todos do interior e quase nunca vêm pra cá. E agora a irmã tinha vindo casualmente visitar o irmão para o final de semana. Era muito parecida com ele de rosto, tinha olhos pequenos e um grande sorriso, e também tinha assim como o Igor um jeitão charmoso e uma voz forte. Mas mesmo assim, era bastante diferente dele de uma forma peculiar: era especialmente bonita. Foi difícil acostumar-se com a presença dela. Aquele encontro, tão rotineiro, familiar e casual hoje virou alguma coisa totalmente estranha. Ela era realmente muito bonita. Teve que se concentrar para manter a compostura e parecer normal – e fez isso com maestria, diga-se de passagem – enquanto se perguntava de onde aquela criatura alienígena e fascinante tinha aparecido, como foi de repente atrapalhar aquela zona de conforto tão banal e como era cosmicamente conectada ao seu melhor amigo ao mesmo tempo que sempre esteve tão longe? Foi um pouco perturbador. Se fosse possível tirar uma foto espiritual daquela situação mais cedo no metrô estaria boquiaberto e vidrado, cara a cara, sem piscar, vasculhando com atenção cada movimento no canto de seu sorriso e cada movimento em torno de seus olhos – como uma criança perdida na terra dos doces – e era isso de fato o que se segurava para não fazer no mundo não espiritual. Dizia-se qual o momento certo de desviar o olhar: ia dela para o irmão, para o teto, as janelas, o chão e de volta para ela, discretamente.  Até que graças ao mundo, que mantém certas coisas sempre do mesmo jeito - que usamos de referência para diagnosticar nossa própria sanidade ou lucidez -, todos ali de pé, olhando para os trilhos à frente como se não tivessem outro lugar para olhar, puderam ver a Luz no fim do túnel e foi um certo alívio imediato. Não vai ter mais que lidar com aquela tensão de novo, pelo menos não pelo fim de semana, o que já é um bom tempo para pensar no assunto. Enquanto isso, enquanto o fim de semana não começa oficialmente, pensou naquilo que dizem de que quando se dorme pensando em algo, é com isso que agente sonha. Boa noite.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

O dragão sutil

Quando o dragão sutil apareceu pela primeira vez, mordeu fora, sem que eu percebesse, um pedaço do menor dos artelhos do meu pé direito, e o lóbulo da minha orelha esquerda. Só fui notar na manhã seguinte, porque meu pé estava formigando e havia algumas manchas de sangue no meu travesseiro. Na segunda vez, mais ousado, me subtraiu um pedaço, ainda bastante pequeno, da barriga, e um naco do tendão atrás do meu joelho esquerdo.
Da terceira vez, eu percebi sua aproximação. Gritei para espantá-lo - parecia pequeno como uma lagartixa, apesar do formato lembrar mais o de uma minúscula cobra alada -, mas meu tamanho e minha voz não serviram para intimidá-lo. Levou, de uma mordida, a ponta do meu nariz, de que eu tanto gostava.
Por esta época, a maioria das pessoas da vila já estava, como eu, subtraída de uns bons pedaços de si. À mestra curandeira já lhe faltavam quase todos os dedos, a capitã da guarda tinha minúsculas cicatrizes, por todo o braço esquerdo e pelas duas pernas, e o relojoeiro não tinha mais um dos olhos, nem sua famosa cabeleira. Eu estava entre as poucas pessoas que tinha acordado durante um ataque do dragão sutil, porém, e nenhum de nós tivera qualquer sucesso com urros ou tochas para espantar o monstro.
Pedi à confraria dos artesãos que me conseguissem uma espada. Resistiram, a princípio. Fosse o "dragão" - dava pra ouvir as aspas em seus ombros - tão pequeno e sorrateiro quanto se relatava, qualquer martelo de cozinha me serviria para amassar-lhe a cabeça. Seria, porém, uma quebra da tradição muito grave matar um dragão com qualquer coisa que não fosse uma espada, redarguiu a chefe da guarda em meu apoio, e a espada foi arranjada. (Soube, mais tarde, que, mais forte que o argumento da capitã, retinia no coração do confrade-mor o temor de ter seus dedos engolidos durante o sono, o que lhe tiraria a profissão).
Quando, seguindo a tradição, tentei cortar fora a cabeça do dragão sutil, minha espada prendeu-se em seu pescoço e tornou-se, a meus olhos, menor que um alfinete. Percebi que o dragão não era pequeno, mas que estava, de alguma forma, distante. E por distante que estivesse, além de perder minha espada entre suas escamas, perdi naquele dia minha mão direita entre seus dentes.
A vila prosseguiu sua vida, e eu, como sempre acaba acontecendo. Aos poucos, todos se acostumaram a amanhecer sem um dos olhos, ou com pedaços da orelha faltando, ou com um rim a menos.
Uns e outros tentávamos nos proteger. Armávamos redes ao redor das camas e armadilhas pela casa. Mas eram quase todas inúteis. O dragão sutil se encolhia - ou se distanciava, nunca soube entender isso muito bem - o dragão sutil se encolhia conforme a necessidade para atravessar mesmo as grades mais apertadas.
Com o tempo, o dragão sutil se tornou uma figura de linguagem - uma forma de se referir ao fenômeno perfeitamente natural de acordar com partes do corpo a menos. Apenas crianças e nós, insistentes supersticiosos, cremos em um dragão que realmente vem durante a noite nos mastigar pedacinhos fora.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

A ordem dos meninos chorando


Como se fosse um ritual secreto, o menino chora sentado sobre a calçada. Cada lágrima que escorre é o pedaço de uma mágica, cada fio escapando do que sobrou de suas calças, é um encantamento. É necessário que o menino chore e sinta o gosto frio do cimento nos ossos de suas pernas.
Dele é a ordem secreta pela qual o mundo é o mundo.
Não fosse o atrito do asfalto contra sua panturrilha, não haveria os trens. Sem o esgarçar de seus bolsos, pesados de tão vazios, que seria das padarias? É o feitiço de cada lágrima que escorre que garante que as câmeras de TV possam apontar e suspirar, aliviadas, quando o sol nascer amanhã.
Dele é a ordem secreta pela qual o mundo é o mundo.
Dele e de outros exatos mil e não sei quantos meninos sentados sobre as calçadas, chorando. Cada lágrima que escorre garantindo exatas quinhentas e não sei quantas famílias ao redor de um pão, dentro de uma locomotiva, em um seriado de televisão. Suas exatas seiscentas e não sei quantas calças completas - compostas pelas partes faltantes das calças de cada um - testemunhas do ontem, do hoje e do amanhã. Seus joelhos de menino pretos de sol e sangue.

sábado, 18 de abril de 2015

Em busca da felicidade

O problema de se estudar o direito é enxergar de forma óbvia toda a injustiça institucionalizada que se sobrepõe em nosso sistema; a ciência e a filosofia é o de perceber que a falta de respostas é parte essencial do universo, e o nosso intelecto é a maior fortaleza de toda a dúvida; já a medicina e afins, que lidam com a vida, é o de que ficamos próximos de cada fragilidade, impotência e do caráter perecível de nosso corpo; e por fim a história e as ciências sociais é o de vermos de novo e de novo, claramente, a perpetuação da tirania e a estúpida autodestruição de toda sociedade.
Em qualquer caso, sem poder fazer nada.
Dizem que a ignorância é uma benção, mas o que se deve ver aqui é que é de todo jeito impossível tornar-se uma pessoa feliz sem que se esforce muito, muito mesmo, para isso; e é também impossível, de qualquer forma, ser feliz esforçando-se - somente - para isso.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Soneto charada

Diz-se, daquele que encara o presente
qual pedra ou flor ou o que quer que haja certo,
este estar sim desdistante e, pois, perto
da realidade, e agudo de mente.

Eu, porém, tendo a ler tudo em aberto:
vivo em um ponto entre a trás e a frente:
sido e a ser muito mais que corrente:
sonho que vivo e do qual mal desperto.

Entre, pois, iluminado e atônito,
luzes que apago e rebrilhos que escuro,
cada lumir me sabendo a enjoo,

Dou-me, enfim, um instante do insólito:
Dispo de mim meus passado e futuro:
Encho de sangue meus dedos, e voo


terça-feira, 24 de março de 2015

Não serei nem terás sido


Fecha outra manhã clara
Sem minuto, sem dia, sem frio ou calor
Sem saber se ela é ontem ou amanhã escritor
Sem momento de fome ou voz de professor


Na de sempre espessa luz
A chuva espreguiçou e o sol se esqueceu
Que pintar desbotado não desfaz todo o breu
E que tem que subir pra lembrar quem sou eu


Quando o tempo decidir
Se ele era, se foi, se ele vai ou se vem
Se ele fica engasgado entre tantos poréns
Se tem hora pra mim ou hora pra ninguém


Nesse dia pois quem sabe
Eu o conte nos dedos e o encare na fronte
E entre os passos pesados de um mastodonte
Eu te olhe, te inspire, me expire e te conte

sexta-feira, 13 de março de 2015

Drei Liebesgedichte

(Três Poemas de Amor; ou
Um Terço de Uma Crônica)

1.
Tem um ar engraçado o Centro, naquela hora indefinida em que a maioria das pessoas já deixou seus postos em lojas, cafés e escritórios diversos do Centro, mas em que uma parte boa dessas lojas, cafés e escritórios do Centro ainda está aberta.

2.
Eu estou sentado nas escadas do Theatro Municipal, e está escuro - daquele jeito que São Paulo, e talvez todas as cidades do mundo, tem de ficar escuro, sem ficar escuro de verdade, exceto em alguns pedaços.

3.
Tem meia hora eu estava andando pela Barão de Itapetininga que ainda estava cheia, mas cheia de gente que parece que já está cheia do dia e já vai logo pra casa, só quer antes dar um pulo na farmácia ou naquela livraria que só fecha às oito.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Enroscado

Preciso sair daqui
Não me leve a mal
O maior conforto à minha pele
é a tua
Mas algo me repele deste enlaçe
em fortes pulsos
nos quais eu miro
todo o meu poder divino
da razão
O foco escapa, no entanto
como luz que se faz
impossível prender

Irei me desvencilhar de ti
Do teu delicioso abraço,
agora
Vou procurar algo para comer
E onde me sentar
Carregando comigo o desejo,
eterno,
de voltar,
a esse momento
Querendo estar assim
o tempo todo
Esroscado em ti

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Os Bohres e a Verdade

Trechos selecionados dos Tratados e Crônicas de Linguística Estrangeira e Nacional, por G. Bennemurde, Cavaleiro do Y-Atol, traduzidos por Este que Assina.

1. (extraído do Capítulo XXXII, terceiro tomo - "Língua e Cultura do povo Böhr"

O povo dos Bohres tem uma mesma palavra para designar, ao mesmo tempo, os conceitos de justiça, legalidade, certidão e verdade. A palavra pode ser transliterada como "baor" em nosso alfabeto - ou "bahor", se aceitarmos as convenções linguísticas mais tradicionalistas do idioma Bohr - e, segundo uma querida amiga, estudiosa bastante respeitada da língua, se relaciona apenas muito tenuamente à etimologia da palavra "Bohr" - mais uma prova inequívoca, ela me diz, da humildade inata de seu povo.
O idioma Bohr é baseado antes na concatenação de adjetivos e advérbios que substantivos, e assim se significam as duas palavras:
"Böhr" significa: "filhos queridos [de]" ou "os filhos mais queridos [de]". A si mesmos chamam-se, na verdade, "Böhrdan'é", os "filhos mais queridos de Terra Mãe", mas os primeiros exploradores do Império que tomaram contato com esse antigo povo não tiveram a paciência para a análise linguística, nem a perspicácia auditiva e vocal para reproduzir o som do "'é", pelo que "Bohres" acabou se vulgarizando entre nós.
"Baor", por sua vez, significa "[que tem a] propriedade de ser saído da boca do Imperador". O Imperador dos Bohrs, como se sabe, não é nada parecido com o nosso. Ao invés de exercer qualquer função política ou militar - normalmente relegadas às Concubinas Imperiais e a servidoras públicas selecionadas por meio de testes - o Imperador Bohr é, enquanto consorte simbólico da Terra, uma espécie de liderança moral e espiritual de seu povo, do qual nenhuma falha ou desvio se espera, ou mesmo se admite.
De tal forma que aquilo que sai de sua boca não é nunca uma mentira, nem uma falsidade, nem uma ilegalidade, nem uma injustiça. Tudo o que sai da boca do Imperador, enfim, tem "baor". Nenhuma lei entra em vigor antes que ele assim proclame, nenhuma descoberta científica ou filosófica é universalmente aceita entre os Bohrs se ele não enunciá-la em voz alta. 
Tecnicamente, é impossível dizer diretamente na língua Bohr que algo é justo, porém ilegal, ou verdadeiro, porém injusto, ou legal, porém incorreto. O falante teria que dizer "Isto tem baor, mas não tem baor", ou "Isto saiu da boca do Imperador, mas não saiu da boca do Imperador"
Mas Bohr é o idioma de um povo antigo, que desenvolveu mecanismos bastante interessantes para resolver a questão.
Assim como o Imperador, nenhum dos Ministros Imperiais exerce uma função prática. Estas são igualmente relegadas às suas esposas e a outras funcionárias. Cada Ministro, porém, funciona como porta-voz de seu Ministério, e nenhuma das ações do ministério se põe em ação sem que um Ministro a enuncie.
Como Ministros não são consortes de divindade nenhuma, o povo é bastante consciente de seus desvios, e com o tempo, passou a necessitá-los também por conta da linguagem. Expressar que algo é correto, mas não verdadeiro, por exemplo, seria impossível sem "batar" [aquilo que sai da boca do Ministro da Economia]. Nem se poderia dizer do que é justo, porém errado, sem "baegh" [aquilo que sai da boca do Ministro da Justiça].
Naturalmente, há diferenças entre as personalidades de cada ministro, e sempre que um novo ministério sobe ao poder, a Alta Escola Imperial de Gramática reúne suas acadêmicas mais notórias para estudar cada um deles, e verificar se há necessidade de alterar o significado de algum termo. "Bashoi", por exemplo - [aquilo que sai da boca do Ministro do Interior] - é um dos termos de significação mais fluida do idioma, e a maioria dos Bohres prefere não usá-lo em seu dia-a-dia. A "tradução" dos documentos do Ministério do Interior quando da troca de ministros é, certamente, uma das atividades que mais ocupa os escalões menores da burocracia Bohr.
Se reúne a Alta Escola de Gramática também sempre que um Imperador resolve suprimir um ministério, ou criar um novo. Para evitar que o povo continuasse a se rebelar diante da injustiça de uma lei - através da palavra "bähéh" - o Imperador Hung'é III extinguiu completamente o Ministério da Guerra, e com ele o conceito de "legal, porém injusto", até que a situação se apaziguasse. A Alta Escola sugeriu aos rebeldes que tentassem combinar "batar" com "bazhough" [aquilo que sai da boca do Ministro da Educação], para alcançar um conceito parecido, mas os ânimos se arrefeceram bastante rapidamente com a extinção de "bähéh".
Outro caso curioso é o da palavra "bazhe'ehg". Esta significa "aquilo que sai da boca do Ministro da Pesca", e surgiu no reinado do primeiro Dao Faih'é, quando este instaurou o ministério. Nenhum Bohr jamais havia pescado ou comido peixes, e nenhum o fez desde então.
Foi bastante confuso.
Como pode sair da boca do Imperador a existência de algo como o Ministério da Pesca? Que haveria de justo, correto, certo e verdadeiro na existência de um tal corpo burocrático? Inimigos de Dao Faih'é se movimentavam para depô-lo, e inimigos da monarquia para derrubá-la. Não havia, afinal, como haver um Imperador de cuja boca não saia "baor", de cuja boca não saía o que sai da boca de um imperador.
Para piorar a situação, o Ministro que ele nomeou, Hung'bo, um amigo seu da época em que estudou Línguas Antigas na universidade da capital, funcionava o Ministério como se nada de errado estivesse acontecendo: emitia especificações técnicas sobre redes de pesca, regulava as épocas adequadas para a pesca de cada espécime, ordenava estudos acerca da reprodução marinha ao redor do continente e escrevia longos discursos a respeito dos refinados sabores que o mar trazia à mesa dos Bohres.    
As mais respeitadas professoras da Alta Escola Imperial de Gramática se puseram imediatamente a investigar, para tentar resolver a crise:
O Imperador Dao Faih'é era, como se sabe, um grande poeta, mas era principalmente um grande tradutor de poesias. Estava já há quase cinco anos empenhado na tradução de todos os poemas do ciclo do centauro Rhû, direto de seu original na Língua da Terra, quando se deparou com um trecho do Cântico de Airam - também conhecido como Terceiro Cântico da Montanha - que fazia referência a um conceito que não existia até então na língua Bohr.
Dao Faih'é não estava disposto a perder seu trabalho de anos, e privar os Bohres menos versados em línguas antigas de um dos mais belos poemas do ciclo de Rhû, por uma simples falha semântica de seu idioma. Explicou o problema a Hung'bo, que também era poeta, e com ele arquitetou a solução: a criação do Ministério da Pesca.
Tinha esperanças que as acadêmicas da Alta Escola Imperial de Gramática compreendessem a necessidade do Ministério, fossem lenientes com a pequena alteração que ele fizera ao genitivo de "pesca" - por conta da métrica do verso - e apelou às que conheciam o Ciclo de Rhû que o defendessem perante as demais. Como argumento de defesa, recitou a estrofe do poema que o justificava:

"E em seus olhos os príncipes do sol habitavam
e em meus olhos um inexistente rei da lua
e entre nossos olhos o paradoxo."

Após a leitura do último verso, concordaram com a pertinência do Ministério da Pesca e, por extensão, do paradoxal "bazhe'ehg". Impuseram ao Imperador, no entanto, que enunciasse - tornando assim "baor" - que apenas poetas poderiam assumir o cargo de Ministro da Pesca, e que o ministério só existiria enquanto se lesse o Ciclo de Rhû em idioma Bohr. Afinal, assim que a magistral série de poemas desaparecer de sua cultura, o Ministério perderá o sentido, e sua extensa burocracia será então apenas dinheiro dos cofres imperiais jogado fora.