sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Os Bohres e a Verdade

Trechos selecionados dos Tratados e Crônicas de Linguística Estrangeira e Nacional, por G. Bennemurde, Cavaleiro do Y-Atol, traduzidos por Este que Assina.

1. (extraído do Capítulo XXXII, terceiro tomo - "Língua e Cultura do povo Böhr"

O povo dos Bohres tem uma mesma palavra para designar, ao mesmo tempo, os conceitos de justiça, legalidade, certidão e verdade. A palavra pode ser transliterada como "baor" em nosso alfabeto - ou "bahor", se aceitarmos as convenções linguísticas mais tradicionalistas do idioma Bohr - e, segundo uma querida amiga, estudiosa bastante respeitada da língua, se relaciona apenas muito tenuamente à etimologia da palavra "Bohr" - mais uma prova inequívoca, ela me diz, da humildade inata de seu povo.
O idioma Bohr é baseado antes na concatenação de adjetivos e advérbios que substantivos, e assim se significam as duas palavras:
"Böhr" significa: "filhos queridos [de]" ou "os filhos mais queridos [de]". A si mesmos chamam-se, na verdade, "Böhrdan'é", os "filhos mais queridos de Terra Mãe", mas os primeiros exploradores do Império que tomaram contato com esse antigo povo não tiveram a paciência para a análise linguística, nem a perspicácia auditiva e vocal para reproduzir o som do "'é", pelo que "Bohres" acabou se vulgarizando entre nós.
"Baor", por sua vez, significa "[que tem a] propriedade de ser saído da boca do Imperador". O Imperador dos Bohrs, como se sabe, não é nada parecido com o nosso. Ao invés de exercer qualquer função política ou militar - normalmente relegadas às Concubinas Imperiais e a servidoras públicas selecionadas por meio de testes - o Imperador Bohr é, enquanto consorte simbólico da Terra, uma espécie de liderança moral e espiritual de seu povo, do qual nenhuma falha ou desvio se espera, ou mesmo se admite.
De tal forma que aquilo que sai de sua boca não é nunca uma mentira, nem uma falsidade, nem uma ilegalidade, nem uma injustiça. Tudo o que sai da boca do Imperador, enfim, tem "baor". Nenhuma lei entra em vigor antes que ele assim proclame, nenhuma descoberta científica ou filosófica é universalmente aceita entre os Bohrs se ele não enunciá-la em voz alta. 
Tecnicamente, é impossível dizer diretamente na língua Bohr que algo é justo, porém ilegal, ou verdadeiro, porém injusto, ou legal, porém incorreto. O falante teria que dizer "Isto tem baor, mas não tem baor", ou "Isto saiu da boca do Imperador, mas não saiu da boca do Imperador"
Mas Bohr é o idioma de um povo antigo, que desenvolveu mecanismos bastante interessantes para resolver a questão.
Assim como o Imperador, nenhum dos Ministros Imperiais exerce uma função prática. Estas são igualmente relegadas às suas esposas e a outras funcionárias. Cada Ministro, porém, funciona como porta-voz de seu Ministério, e nenhuma das ações do ministério se põe em ação sem que um Ministro a enuncie.
Como Ministros não são consortes de divindade nenhuma, o povo é bastante consciente de seus desvios, e com o tempo, passou a necessitá-los também por conta da linguagem. Expressar que algo é correto, mas não verdadeiro, por exemplo, seria impossível sem "batar" [aquilo que sai da boca do Ministro da Economia]. Nem se poderia dizer do que é justo, porém errado, sem "baegh" [aquilo que sai da boca do Ministro da Justiça].
Naturalmente, há diferenças entre as personalidades de cada ministro, e sempre que um novo ministério sobe ao poder, a Alta Escola Imperial de Gramática reúne suas acadêmicas mais notórias para estudar cada um deles, e verificar se há necessidade de alterar o significado de algum termo. "Bashoi", por exemplo - [aquilo que sai da boca do Ministro do Interior] - é um dos termos de significação mais fluida do idioma, e a maioria dos Bohres prefere não usá-lo em seu dia-a-dia. A "tradução" dos documentos do Ministério do Interior quando da troca de ministros é, certamente, uma das atividades que mais ocupa os escalões menores da burocracia Bohr.
Se reúne a Alta Escola de Gramática também sempre que um Imperador resolve suprimir um ministério, ou criar um novo. Para evitar que o povo continuasse a se rebelar diante da injustiça de uma lei - através da palavra "bähéh" - o Imperador Hung'é III extinguiu completamente o Ministério da Guerra, e com ele o conceito de "legal, porém injusto", até que a situação se apaziguasse. A Alta Escola sugeriu aos rebeldes que tentassem combinar "batar" com "bazhough" [aquilo que sai da boca do Ministro da Educação], para alcançar um conceito parecido, mas os ânimos se arrefeceram bastante rapidamente com a extinção de "bähéh".
Outro caso curioso é o da palavra "bazhe'ehg". Esta significa "aquilo que sai da boca do Ministro da Pesca", e surgiu no reinado do primeiro Dao Faih'é, quando este instaurou o ministério. Nenhum Bohr jamais havia pescado ou comido peixes, e nenhum o fez desde então.
Foi bastante confuso.
Como pode sair da boca do Imperador a existência de algo como o Ministério da Pesca? Que haveria de justo, correto, certo e verdadeiro na existência de um tal corpo burocrático? Inimigos de Dao Faih'é se movimentavam para depô-lo, e inimigos da monarquia para derrubá-la. Não havia, afinal, como haver um Imperador de cuja boca não saia "baor", de cuja boca não saía o que sai da boca de um imperador.
Para piorar a situação, o Ministro que ele nomeou, Hung'bo, um amigo seu da época em que estudou Línguas Antigas na universidade da capital, funcionava o Ministério como se nada de errado estivesse acontecendo: emitia especificações técnicas sobre redes de pesca, regulava as épocas adequadas para a pesca de cada espécime, ordenava estudos acerca da reprodução marinha ao redor do continente e escrevia longos discursos a respeito dos refinados sabores que o mar trazia à mesa dos Bohres.    
As mais respeitadas professoras da Alta Escola Imperial de Gramática se puseram imediatamente a investigar, para tentar resolver a crise:
O Imperador Dao Faih'é era, como se sabe, um grande poeta, mas era principalmente um grande tradutor de poesias. Estava já há quase cinco anos empenhado na tradução de todos os poemas do ciclo do centauro Rhû, direto de seu original na Língua da Terra, quando se deparou com um trecho do Cântico de Airam - também conhecido como Terceiro Cântico da Montanha - que fazia referência a um conceito que não existia até então na língua Bohr.
Dao Faih'é não estava disposto a perder seu trabalho de anos, e privar os Bohres menos versados em línguas antigas de um dos mais belos poemas do ciclo de Rhû, por uma simples falha semântica de seu idioma. Explicou o problema a Hung'bo, que também era poeta, e com ele arquitetou a solução: a criação do Ministério da Pesca.
Tinha esperanças que as acadêmicas da Alta Escola Imperial de Gramática compreendessem a necessidade do Ministério, fossem lenientes com a pequena alteração que ele fizera ao genitivo de "pesca" - por conta da métrica do verso - e apelou às que conheciam o Ciclo de Rhû que o defendessem perante as demais. Como argumento de defesa, recitou a estrofe do poema que o justificava:

"E em seus olhos os príncipes do sol habitavam
e em meus olhos um inexistente rei da lua
e entre nossos olhos o paradoxo."

Após a leitura do último verso, concordaram com a pertinência do Ministério da Pesca e, por extensão, do paradoxal "bazhe'ehg". Impuseram ao Imperador, no entanto, que enunciasse - tornando assim "baor" - que apenas poetas poderiam assumir o cargo de Ministro da Pesca, e que o ministério só existiria enquanto se lesse o Ciclo de Rhû em idioma Bohr. Afinal, assim que a magistral série de poemas desaparecer de sua cultura, o Ministério perderá o sentido, e sua extensa burocracia será então apenas dinheiro dos cofres imperiais jogado fora.