quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Revenant

A porta se abre com dificuldade. É como se o tempo houvesse se acumulado em suas dobradiças, em sua fechadura. O tempo e o ócio. Claramente o apartamento ficou intocado desde que eu o fechei, tanto tempo atrás. Preciso fazer força para conseguir entrar. Uso o ombro, como num daqueles filmes policiais. Não serviria de nada se ela já não estivesse aberta, é claro. Mas entro ainda no impulso do escorão, de surpresa, sem ter tempo de calcular meu primeiro passo. Não sei se foi com o pé direito ou esquerdo. Uma superstição boba que não iria fazer a menor diferença. Eu sei que voltar aqui não é uma boa ideia. O assassino voltando à cena do crime. Eu sabia que era uma ideia ruim e voltei mesmo assim. Isso deve dizer um pouco sobre mim. Sobre como sou burro. Ou sobre como sou dependente das coisas ruins que existem dentro de mim. E nada poderia ser mais parecido com o meu interior do que este apartamento. Parece o cenário de um filme de terror. A casa assombrada esperando uma família ingênua se mudar para poder eliminar cada um de seus membros. Exceto que aqui não há nenhuma família, apenas eu. Todos os móveis estão cobertos em lona branca. Como se fossem, cada um deles, fantasmas inanimados, ridículos. E sobre isso uma camada grossa, vil, de poeira se assentou. Não imagino de onde ela pode ter vindo, todas a entradas estão fechadas. Mas ainda assim se acumulou, grossa, sólida. O próprio ar esta estagnado. Imagino que entrar na tumba de um faraó, sob uma pirâmide fechada há milênios, não poderia ser muito diferente daquilo. Sei lá quanto tempo faz que cobri tudo que existia ali, naquele lugar que chamava de casa, e me fui, como se tivesse algum outro lugar para ir. Depois de atravessar aquela porta, fugindo, o tempo nunca mais passou da mesma forma. Era como se passasse com uma velocidade tão grande que criava uma força centrípeta, me mantendo parado em seu centro. O que é dizer, é como se o tempo não existisse. Poderiam ter sido apenas dias, mas me pareciam – e a poeira concordava comigo – séculos, muitas vidas, das quais eu não vivi nenhuma. Vou descobrindo as peças uma por uma. Redescobrindo memórias, memórias que não tinham o efeito que eu poderia esperar. O sofá estava cheio de fúria, as estantes, com os livros de lombadas apagadas, eram o peso opressor inigualável da memória e do esquecimento, a cama era frustração sexual, solidão, a mesa era feita de fome, suas pernas desiguais a infindável necessidade, a busca por tudo que nunca consegui, nunca iria conseguir. Nada era belo e tudo machucava. Respirava com dificuldade. O pó e as lágrimas entupindo todas as vias da minha alma, me sufocando num passado que eu não mais conseguia lembrar, que era tão distante que não me causava efeito nenhum. Abandonar esse lugar tinha sido a insensibilidade. Voltar era sentir apenas uma coisa; a dor de ter perdido o passado e não ter conquistado nenhum futuro se não o lixo. Como poderia ser diferente quando não se sente nada? Voltei porque achei que aquilo não era viver, mas antes de levantar a última lona, eu sabia que encarar aquela imagem seria morrer. Levantei o véu e lá estava eu, jogado no chão. A faca ainda enfiada em meu coração. Minhas lágrimas imediatamente cessaram. Como Dorian deve ter se sentido ao observar seu quadro, com seu último suspiro? Eu não respirava já desde de não sei quando. Estava ali, jogado, estranhamente conservado – mas não muito, era claramente um cadáver em decomposição ali, sua pele esverdeada, sua carne carcomida, como que inexistente entre o osso e a superfície – o meu cadáver. Eu o havia ocultado e fugido. Escapara de meu próprio suicídio e andava por aí, morto por dentro. Não era o único a fazer algo assim. Andando na rua é fácil para nos reconhecermos. Falta o brilho no olhar, falta o tesão em viver. Lá fora era o contrário, nada doía, mas era também incapaz de sentir prazer. De sentir o que fosse. E algo assim não passa despercebido. Você aguenta, por um tempo. Mas o céu acaba caindo sobre sua cabeça em forma de memória. Porque esquecer o valor de algo é uma forma de lembrar, e é a pior forma possível. Não é só porque o quebra-cabeças perdeu algumas peças que, ao montá-lo com lacunas, o tornamos completo novamente. Se apaixonar não é a mesma coisa sem o frio na barriga. E, convenhamos, quem retribuiria a paixão de alguém assim? O esquecimento nos faz sentir falta de quando podíamos lembrar. Voltei porque sentia falta de como era viver. Mas voltei sabendo que não existe remédio. As mudanças que acontecem sobre nós não podem ser desfeitas, não se pode reviver. Só se pode mudar mais. Só se pode olhar nos olhos de nosso próprio cadáver e reconhecer nossos atos. E o corpo, os restos, nos olham de volta e nos enchem de raiva, de fúria, de solidão, de tudo que nos machuca desde os primórdios da vida. É só isso que sobra. É o que há de impuro, de podre, de ruim. É a frustração consigo mesmo, aquele veneno que tomamos todos os dias, desde o berço, aquilo que nos faz crescer e faz nossas juntas doerem a cada movimento, a amargura absoluta que acaba nos matando. Eu sabia que não podia voltar a ter o que antes me doía, por mais que sentisse falta da dor, da ansiedade, da aflição, daquelas coisas que me faziam um ser vivo. Tudo que podia fazer era mudar mais, era morrer de novo. E olhando nos meus próprios olhos, como através de um espelho baço, a alma se esvai.

Um comentário:

Bella disse...

Emannuel, eu senti muita falta dos teus textos. Bom vê-lo por aqui de novo.