terça-feira, 31 de maio de 2016

Plágio cortázariano sem talento

As notas que saíam do saxofone eram pura violência. No palco, a banda de jazz parecia comedida, controlada, muito diferente da melodia que fabricavam. Ao ouvir os primeiros acordes, ainda no bar, contíguo ao palco, formando um L, ele sentiu o impulso de se afastar tanto quanto pudesse dali. Mas a bebida era mais importante. Sem ela não iria suportar mais um minuto naquele lugar. As sobrancelhas do homem de óculos se arquearam, escondendo-se atrás da armação preta. Se perguntava por quê havia pedido um drink ao barman, e se a sua montagem era tão complexa assim a ponto de justificar essa demora. Deveria ter pensado nisso antes, pegado uma taça de champanhe, simplesmente. Mas precisava de um teor alcoólico maior que aquele, disso estava certo. Quando recebeu sua bebida, no que lhe pareceu séculos depois, partiu quase que correndo do balcão. Era um movimento burro, como percebeu imediatamente; não fazia ideia de para onde poderia ir e, ainda que soubesse, não poderia se apressar tanto. Não porque sua afobação fosse chamar atenção das pessoas em vestidos que pareciam feitos de lírio ou ternos qual o céu noturno, mas porque, ainda que não lotada, a festa tinha gente o suficiente para lhe atrapalhar a velocidade. Mas o saxofone continuava lhe martelar o cérebro, assim como a alma, tinha que se afastar. A sensação de claustrofobia crescia. O homem de óculos suava. Torrenciava. Não tinha problemas com a vestimenta formal, como muitos, até se sentia bem com uma gravata bem enlaçada, mas por algum motivo estava desconfortável naquela noite. Não em seu terno, mas em sua pele. Olhava para todos, mas não reconhecia nenhum dos rostos. Tentava escutar as conversas, mas era como se fossem travadas em idiomas que ele jamais havia conhecido. Talvez esse realmente fosse o caso. Parecia estar numa bad trip, num estado de paranoia ampliado. Tomou de um gole metade do conteúdo de seu copo, como desejando que o álcool lhe subisse rápido à cabeça. O líquido desceu goela abaixo amargando mais que a vida. Partiu em direção à escada, pensando que no andar superior o jazz não o encontraria com tanta força. Esperava que algo acontecesse, podia pressentir a aproximação, sem saber de que. O piso superior não lhe aliviou a sensação de forma alguma. As notas pareciam repercutir diretamente do assoalho. As pessoas, em suas vestimentas haute couture não diferiam em nada, poderiam muito bem estar usando máscaras venezianas, tanto suas características se mesclavam de uma à seguinte. Se dirigiu ao terraço, onde algumas pessoas fumavam. Não tinham nenhum motivo especial para fazê-lo se não hábito, já que em todos os corredores a fumaça dos cigarros era proeminente. O homem de óculos achou que lá conseguiria respirar melhor e, de certa forma, estava certo. A visão das arvores que rodeavam a mansão, ainda que com seu verde obscurecido pela noite, o acalmava, assim como o lago próximo, refletindo a lua de uma forma que parecia o ideal platônico desta cena bucólica. A música do salão principal ainda o atingia, desconfortavelmente. O sax havia amainado, mas uma voz se unira à harmonia. O homem de óculo observou um casal que caminhava abraçado pela calçada de tijolos vermelhos (deviam ser vermelhos, ele pensava) que separava as arvores do lago. O casal obviamente havia se desprendido da massa uniforme da festa em busca de momentos de privacidade. Ainda que lhes dessem as costas, o homem de óculos conseguia vê-los sorrir. Uma das pessoas tinha longos cabelos loiros, outra curtos e escuros. Se vestiam como todos naquele lugar, mas, por algum motivo, pareceram ao seu observador estranhamente individuais. Ele sabia que, se os encontrasse depois, ainda que só os tivesse visto de costas, conseguiria reconhecê-los. Havia algo no jeito que se moviam. Uma malemolência que parecia mistura de álcool e de paixão. A vocalista cantava “another victim on the promenade”, como se cantasse “I fall in Love too easily”. E o voyeur sentiu nisso um mau agouro. Uma sensação de inevitabilidade se espalhou por seu corpo a partir do estômago, como as borboletas que se libertam do casulo na realização de uma paixão, mas não eram borboletas o que sentia, e sim insetos frios, que deixavam seu corpo dormente de medo. Era como se uma faca lhe penetrasse o abdômen. Sentiu vontade de gritar, mas a voz não lhe saiu. O máximo que conseguiu por para fora foi um suspiro qual trompete com surdina. Foi nesse momento que entendeu o que seu corpo já pressentira. Aquele casal que lhe parecia tão apaixonado era, na verdade, uma cena de assassinato. Ele viu a lâmina refletir o brilho da lua, o sangue se derramar pelo pavimento da calçada. Viu a vítima, ainda num abraço amoroso em volta de quem lhe matava, ser guiada até o lago, onde os dois entraram juntos. A roupa do homem de óculos estava ensopada de suor, como se ele mesmo estivesse também entrando no lago. Mais ninguém no terraço parecia perceber o que estava acontecendo. Ou não se importavam, o que dava no mesmo. Quando o nível da água cobriu completamente os amantes, o homem de óculos também se sentiu submerso. Não respirava. Buscava por ar, sem sucesso. Um círculo de convivas se formara ao redor dele. Nenhum movia um músculo para ajudá-lo, por mais que seu olhar suplicante lhe caísse sobre os rostos que pareciam feitos de cera. Pelo contrário, pequenos sorrisos se formavam naquelas faces que, cada vez mais, pareciam máscaras. E quanto mais ele se debatia, sem conseguir respirar, as mãos como que tapando uma ferida em seu ventre, mais se alargavam os sorrisos. O homem de óculos voltou a olhar para o ponto onde os amantes haviam desaparecido sob a água. Deles, o único sinal que viu foi também sua última visão: a lua refletindo nas lentes rodeadas por grossos aros escuros.